quinta-feira, 16 de junho de 2011

'Expresso do Inferno': Repórter embarca no Barra 3 e sofre junto com os usuários da linha

Quando o Barra 3 encosta na Estação Pirajá, a briga por uma vaga no coletivo é recheada de socos, cotoveladas e rasteiras.


O italiano Dante Alighieri, n’A Divina Comédia, descreve a chegada dos passageiros de Lúcifer ao inferno. Na porta dos subterrâneos, sem usar Salvador Card ou passar na catraca, os condenados ao fogo eterno se deparam com o escrito: “Vós que aqui entrais, perdei vossas esperanças”.
Uma placa com o mesmo enunciado caberia direitinho se fosse pendurada no acesso à Estação Pirajá, segunda maior estação de transbordo de Salvador, por onde passam todos os dias 130 mil pessoas.

Pelo menos os personagens do clássico de Dante não precisam enfrentar diariamente a fila para embarcar no Barra 3, linha que no terminal já ganhou o apelido de Expresso do Inferno. 

Como dois anjos caídos do céu, no horário de pico, às 6h, eu e o repórter fotográfico Antônio Saturnino entramos na fila para pegar o famoso ônibus da empresa Axé. Uma espécie de arca de Noé do transporte público. “Isso aqui é pra bicho, não pra gente. Se bem que tem gente que parece animal”, brada o lavador de carros Jéferson Cardoso, 22.

Ontem, dia seguinte a uma enorme manifestação de usuários que não suportaram mais a demora do coletivo e a situação precária da estação, as confusões continuaram.
Na disputa desigual, quem mais sofre são as mulheres

Dor
Coitada de Bianca Santos de Jesus, uma auxiliar financeira de 22 anos e 1,56m, que chega na estação às 6h30 e  fica ao nosso lado. “Já me zunharam nas costas, já levei porrada nos seios e me imprensaram na porta do carro. Teve uma vez que me enforcaram. Vamos ver o que vai acontecer hoje”, conta a jovem que, na fila do Expresso do Inferno, não conseguiu a proteção do Senhor que lhe dá nome.  

Quando o buzu das trevas finalmente chega, às 7h20, começa um empurra-empurra dos diabos. Bianca desaparece na multidão. Os óculos de uma mulher caem. As pessoas gritam como se fossem ao encontro de Belzebu.
É nessa hora que um homem todo de vermelho, abrindo caminho, me dá uma cotovelada na altura dos rins. Desisto e apelo para a carteirada. Quem diria? Pra entrar no inferno, só com crachá. O motorista, que libera a entrada daquelas pobres almas, vê que estou trabalhando e deixa que eu suba pela frente.

Já dentro do ônibus, assisto ao resto da confusão até que o Barra 3 fique entupido. “Rapaz, se eu tirar um dos meus pés do lugar não vou ter onde botar”, ainda brinca o oficce-boy Jorge Oliveira, 25. “O prefeito tem que vir aqui de manhã pegar esse Barra ”, sugere uma das passageiras. Chove lá fora. As janelas estão fechadas e todo mundo respira o mesmo mormaço. “Depois o pessoal não sabe como é que se pega meningite”, completa Jorge.

Partida As mulheres parecem condenadas a sofrer em dobro. Os homens usam a força bruta e elas vão ficando para trás. “Puxa o carro, puxa o carro motô!”, grita um dos fiscais, apesar de as portas ainda estarem abertas.

Um homem que não consegue se pendurar corre para a frente do veículo e ameaça o motorista: “Não vai puxar nada. Você é palhaço, é?”. Quando as portas do inferno se fecham, não tem volta.

Com todos os sinais de trombetas, anjos e guardiões, o expresso parte entre brumas de mil megatons. É a chuva apertando. A viagem não é nenhum mergulho num lago de enxofre, mas, com o Barra 3 lotado, chega perto disso. “Pego essa linha há três anos. Só consegui viajar sentada duas vezes”, garante Clara Dias, uma senhora baixinha de 55 anos que se estica toda para se segurar.
Ônibus da linha Barra 3 já sai da Estação Pirajá lotado e o passageiro que vacilar perde até o lugar do pé

Em pé
Também não tenho a sorte de achar um lugarzinho. Em pé o tempo inteiro, de braços e abraços com o bem, enfrento BR-324, Bonocô, Ogunjá e Vasco da Gama. Sorte que o trânsito flui. Desço junto com Bianca, na Garibaldi, 40 minutos depois do embarque. No trajeto de uns 70 km, ida e volta, o Barra 3 ainda tem pela frente Vale do Canela, Graça, Barra e muito mais. O motorista é um túmulo. “Não vou falar mal de nada, não. Depois perco o emprego”.  “Amanhã tem mais. Só Deus...”, disse Bianca, 20 minutos atrasada para o trabalho. Pior é que, se Deus resolve lavar as mãos, não há solução à vista.

A prefeitura quer mais ônibus. O Sindicato das Empresas de Transporte argumenta que aumentar a frota significa mais transtornos. Enquanto não se decidem, tudo deve continuar como está. Portanto, vós que entrais na Estação Pirajá, perdei vossas esperanças.


Transalvador promete ordenar filas a partir da semana que vem
Para Transalvador, só é preciso organizar filas (Por Bruno Villa)Uma única medida foi adotada de imediato na Estação Pirajá para tentar resolver o problema dos viajantes do Expresso do Inferno. Desde ontem, um solitário ônibus a mais foi posto à disposição dos  usuários que se aventuram pela linha 1388, Estação Pirajá/Barra 3. Agora, são 14 veículos. A linha é operada pela empresa Axé, que até terça-feira operava com 13 carros. Mas, para o superintendente da Empresa de Trânsito e Transporte do Salvador (Transalvador),  Alberto Gordilho, o problema na estação não é a quantidade de ônibus.

Segundo ele, a confusão enfrentada pela população, diariamente, tem como principal causa a falta de profissionais para organizar as filas. “Hoje não temos nenhum ordenador de fila e é isso que gera a grande confusão”, resumiu. O superintendente afirma que já solicitou a contratação, em regime de urgência, e garantiu que eles começarão as atividades segunda ou terça-feira da semana que vem. Para Gordilho, o aumento da frota, além de não resolver, pode piorar a situação na circulação dos veículos dentro da estação e na cidade. “Salvador não comporta ampliação da frota. Os horários de pico estão saturados. Precisamos de um transporte público de massa eficiente”, disse.
Ele negou que a Transalvador vá colocar mais cem ônibus na rua, como a própria superintendência informou após a crise na estação.  Outro motivo para a bagunça são os atrasos, uma das principais reclamações dos usuários. O diretor da Axé, Sérgio Aníbal, atribuiu o problema ao trânsito de Salvador. Segundo ele, os ônibus saem pontualmente no primeiro horário, às 5h, mas não têm hora para retornar à estação. “A viagem, que deveria durar 2h30, leva às vezes 3h30. Isso prejudica todo o itinerário”, explicou. 

Circulação de coletivos foi bloqueada na manhã de terça-feira

Manifestação de usuários fechou Estação Pirajá
A informação de que os próprios usuários apelidaram de Expresso do Inferno a linha Estação Pirajá/Barra 3, da empresa Axé, veio à tona na terça-feira, quando a paciência dos passageiros se esgotou. Depois de esperarem o coletivo por duas horas na plataforma, duas mulheres não conseguiram entrar no veículo quando enfim ele encostou, por volta das 7h. Elas então tomaram a frente do ônibus e impediram sua saída.
A manifestação ganhou o apoio de cerca de 500 pessoas e até quem já tinha garantido seu lugar no veículo desceu para fazer coro às reclamações. O protesto contra a demora e a superlotação da linha 1388 se transformou numa grande revolta contra as condições precárias da Estação Pirajá, onde as filas são imensas e os banheiros depredados viraram abrigo para usuários de droga, informação confirmada pela polícia.
Até as 9h30, todos os ônibus foram impedidos de entrar ou sair do terminal, o que causou um engarrafamento que entrou pela BR-324 e chegou até o Bonocô. “Nós tínhamos que parar a estação para mostrar a situação de completo abandono”, resumiu o eletricista Paulo Sá, 40 anos, obrigado a passar ali todos os dias.
Veja o sufoco que a população passa (vídeos de Alexandre Lyrio):

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